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Saudades do Futuro (Uma exegese do Salmo 137)

15/05/2010 17:45

"A saudade é o revés do parto..." (Chico Buarque)

Introdução

Ao folhear o livro de Salmos, o crente depara-se com poemas belíssimos, com clássicos hinos do povo judeu, com estupendas declarações e expressões de fé. Mas o Salmo que sempre chamou-me a atenção não está enquadrado em nenhuma dessas características. O Salmo 137 não é nenhuma expressão litúrgica de louvor, nem um estrondoso cântico de romagem. Mas é um lamento do fundo da alma humano, onde o gemido existencial não pergunta o que é certo ou que é errado, apenas quer desabafar. Tentamos, através do método histórico-crítico, abordar a insistência do uso de zkr (lembrar) como recurso estilístico e relacioná-lo com a temática da esperança. Todo o diálogo com as correntes teológicas foi construído a fim de encontrar bases para a abordagem do conceito exegético-dogmático de esperança, principalmente adequando-o às teologias pragmáticas contemporâneas. Propõe-se, durante todo o trabalho, que a lembrança a que se refere o autor do salmo é muito mais que uma memória metafísica: é, na verdade, um compromisso de fidelidade prática, levado a efeito pela esperança nas promessas de Iahweh. Todo este trabalho concretiza-se na aplicação eclesiológica, onde abre-se a possibilidade à Igreja de tornar-se verdadeira agência do Reino de Deus, desde que mantenha seus olhos fixos no modelo escatológico da Jerusalém celestial. Imprimimos um estilo ao trabalho que vai do estritamente técnico, no início, ao clímax artístico no final, por acreditarmos que não se pode falar de Salmos sem arte e emoção. Esperamos que este trabalho sirva de incentivo à Igreja, para que erga os olhos e caminhe consciente de sua tarefa: não contaminar-se com os sistemas iníquos opressores deste mundo; para que ela sinta, dentro de si mesma, as saudades do futuro. Traduções Proposta de tradução 1. Ai daqueles que ajuntam casa a casa, juntam campo a campo, até que não haja mais espaço e sejam os únicos moradores da terra. 2. Iawheh dos Exércitos jurou aos meus ouvidos: Certamente que muitas casas ficarão terrivelmente devastadas, as grandes e belas ficarão desertas. 3. Dez jeiras de vinha não darão mais que um bato, um ômer de semente não dará mais que um efa.

Análises Análise Semântico-Estrutural Análise Semântica e Teológica

Algumas palavras destacam-se na perícope analisada, quer por sua importância para o entendimento do texto, quer por aspectos interessantes na tradução ou na aplicação. Passaremos, neste ponto, a considerá-las.

Campo

Este termo, sadeh, aparece outras 333 vezes no AT. Tem o significado de campo, campina, chão ou terras. No v. 8 aparece como masculino, singular, absoluto. Traz em si a idéia de terra para plantar. Não era somente uma gleba de terra, como as que temos hoje para especulação imobiliária. Se perdesse a sua característica de lote, de pedaço de terra, deixava de ser intrinsecamente um sadeh. Vai adquirir no AT uma evolução de significados que nos leva a três perspectivas: a) o primeiro sentido é o puramente geográfico. Sadeh é um vocábulo que designa pastagem ou área deserta (Gn 29.2; 4.8; Dt 21.1; 22.25; Jz 9.32, 42; I Sm 19.3), uma planície - que pode ser arada - em contraste com as montanhas (Jz 5.18; Jr 17.3). É então um termo genérico, mas que nos dá a impressão de ser designativo de terra arável que, mesmo se não está em condições no momento, pode ser utilizada para o cultivo. b) o sentido mais corriqueiro é o de porção ou lote de terra - propriedade. Pode adquirir a conotação de terra cultivada de propriedade privada (Gn 47.20; Is 5.8; cf Gn 37.7; Rt 2.2), seja território municipal (Gn 41.48; Lv 25.34), de uma nação ou tribo (Gn 41.48; Lv 25.34) ou até mesmo terras pessoais de um rei (II Sm 9.7; 19.29, 30). c) existe um último sentido do termo que, na verdade, é um desdobramento do anterior: é a abordagem que o movimento profético vai fazer de sadeh. Temos dois exemplos claros de aplicações neste sentido. O primeiro é a do texto de Jeremias 32.7-44. Aqui vemos um exemplo detalhado e interessante de um contrato de compra e venda de um sadeh, uma gleba de terra. Num movimento típico do profetismo, Jeremias dá uma conotação simbólica a este ato concreto. Ele estende a Israel a idéia de campo: que depois da desgraça seria resgatado por Deus. Miquéias traz esta mesma idéia de forma ainda mais vívida, quando apresenta o futuro de Sião sendo arado como um campo, em 3.12. Não há porém uma perspectiva nihilista no vaticínio do profeta, pois depreende-se a idéia de que, depois de arado e preparado com a retirada das impurezas, Sião voltará a ser um sadeh comum a todos. Apesar de termos enquadrado a perícope em questão no segundo caso, nada impede que o termo sadeh em 5.8 carregue também o sentido dado pelo movimento profético (do qual, afinal de contas, Isaías pertence). O campo a que o texto se refere é este mesmo, que deveria ser comum ao povo para que este o cultivasse, mas acaba como instrumento de injustiça e opressão.

Terra

O termo, com certeza, de maior importância para a compreensão do texto é há’erets. Esta é uma forma composta de artigo + substantivo masculino, singular ‘erets. Pode significar terra, cidade(-estado), mundo (inferior). É o quarto substantivo mais usado no AT - ocupa 29 colunas da concordância de Wigram, e aparece 2504 em hebraico e 22 vezes em aramaico. Qual é a razão deste tão grande uso? A terra tem um significado especial para Israel. Nela se demonstra a soberania de Iahweh criador e a aliança que Ele estabeleceu com o povo. Deus cria a terra (Gn 1.9-13) e por isso é o dono desta terra (Sl 24.1). Na concepção dos judeus, é muita clara a noção de que o Senhor ó rei da ‘erets (Sl 27.2[3]) e o seu Senhor (Sl 97.5). Se Iahweh é o rei e Senhor da terra, isto significa dizer que a terra (o mundo) é boa. Este é o primeiro grande ensinamento da perspectiva da terra no AT. O AT não está preocupado em criar formulações preocupadas e obscuras sobre a vida vindoura. Ao contrário, seus escritores são homens do chão, "povo da terra". Em contraste com as outras culturas do Oriente, o AT é silencioso quanto à vida futura ou a outro mundo. Mostra-se claramente preocupado em demonstrar que esta terra é boa e Deus tem um plano para os homens que nela habitam, e quer que nela este plano seja efetuado. Por detrás desta concepção geral da terra como a demonstração da soberania do Criador e como pano de fundo das realizações do homem, está a certeza de que o trato com esta ‘erets deve ser justo e promover a justiça. Decorrem daí todas as leis, costumes e determinações judaicas no sentido de que todos tenham acesso à terra, porque somos apenas mordomos numa ‘erets do Senhor (Lv 25.23-34)

Estruturas internas (simplificado)

O salmo segue uma seqüência clara. A disposição lógica do texto é centrada nos personagens. A primeira parte refere-se ao povo, é ele quem lamenta. A segunda parte aponta para Jerusalém, é por ela que todas as promessas valem a pena e é em Iahweh que todos os desafios fazem sentido. A parte final concentra-se nos inimigos, é sobre eles que deve ser imposta a vingança do Senhor, sobre Edom e Babilônia. Todo texto é pautado pela contraposição entre lembrar e esquecer (ou não lembrar). O lamento inicia-se pelas lembranças de Sião (v. 1). Os rios que atravessavam as planícies babilônicas já bastavam para fazer lembrar Sião aos judeus, tão diferente geograficamente. Mais tarde, o poeta amaldiçoa a si mesmo caso esqueça de Jerusalém, caso não se lembre da Cidade de Deus. A lembrança de Jerusalém é o que move sua caminhada. Finalizando, o clamor do povo é para que Iahweh lembre a Edom e a Babilônia as maldades feitas a Judá. E a lembrança de Iahweh só pode ser para abençoar ou amaldiçoar. É a partir desta realidade importante do lembrar, desta lembrança melancólica, da saudade contida no lamento, que examinaremos a perícope.

Análise de Contextos Contextos Literários

a) Contextos próximo e remoto

O contexto próximo é aquele que relaciona a perícope aos textos imediatamente anteriores e posteriores. No caso de Salmos, há uma problemática com relação ao contexto próximo, afinal de contas, cada salmo é uma unidade independente. Apesar disso, pode-se verificar um contexto próximo, caso a perícope delimitada seja apenas uma parcela do salmo (nessa hipótese, o contexto próximo será os versículos anteriores e/ou posteriores à perícope). Como consideramos o salmo por completo em nossa delimitação da perícope, não há contexto próximo a ser analisado.

b) Contexto no livro

A análise do contexto no livro é o que possibilita entender a perícope em relação ao livro onde está inserida. A partir da temática geral do livro, tenta-se enxergar o texto escolhido como uma especialização desta temática. No caso do nosso texto em questão (o salmo 137), a mesma problemática com relação aos contextos próximo e remoto surgirá, pois não há homogeneidade no livro dos Salmos. Apesar disso, podemos classificar nossa perícope em função da coleção em que se encontra. Encontramos cinco coleções de salmos tradicionalmente aceitas - composição feita, com certeza, por um redator para acentuar uma semelhança estrutural com o Pentateuco. Cada coleção encerra-se com uma doxologia (Sl 41, Sl 72, Sl 89, Sl 106 e, como doxologia final, Sl 150) e não se diferenciam por grandes características individuais. O último grupo, onde está inserida nossa perícope, vai do Sl 107 ao 150. Nesta coleção encontramos a famosa Oração de Moisés (Sl 90, cf Dt 32ss), o assim chamado Hallel (Sl 113-118) e os cânticos graduais ou de peregrinação (Sl 120-134). Esta última coleção é uma coleção javista, ou seja, refere-se a Deus, como Iahweh - o que percebemos em nossa perícope. É clara, no salmo 137, a presença de um Deus atuante, senhor da História, seguindo a linha de tradição javista. Esta observação, com certeza, nos auxiliará numa melhor compreensão do texto.

c) Contexto canônico

Análise do contexto canônico é a comparação da perícope analisada com os outros livros da Bíblia, a fim de verificar se o texto é uma citação ou uma fonte para outros textos. O versículo 8 do salmo 137 é citado em Apocalipse 18, versículo 6. No contexto apocalíptico, a Babilônia é o Império Romano, injusto e idólatra. Certamente, não haveria melhor associação de idéias. A opressão romana e a perseguição movida aos judeus e cristãos (o início, ainda, de uma dura e cruel história) eram uma lembrança fiel do que significou o desterro de Judá e o cativeiro babilônico. De repente, os cânticos e lamentos do cativeiro tomaram um novo sentido para a comunidade cristã primitiva. Roma era a Babilônia, e as promessas a respeito da sua destruição ainda eram verdadeiras (cf Ap 18.2). No momento de sua destruição, Deus conclama a seus filhos que abandonem Babilônia, pois Ele retribuir-lhe-á o que ela fez no mesmo nível. A referência à nossa perícope é clara, trazendo luz à nossa leitura, quando interpreta o salmo a partir de um contexto de esperança, entendendo a vitória como fruto da militância espiritual, guiados sob a luz do Espírito e pelo sangue do Cristo.

Contextos históricos/sociológicos

a) Sitz im Leben O Sitz im Leben é um conceito importantíssimo para o método exegético histórico-crítico, refere-se ao contexto de criação de uma perícope. O Sitz im Leben não é o contexto vital do fato narrado em um texto, mas sim da escrita do texto. O momento de autoria do Salmo 137 é algo que, certamente, não poderá ser afirmado com absoluta certeza científica. Porém um dado é certo: há uma relação clara entre o texto e o cativeiro babilônico. Segundo Schmidt, o salmo 137 é o único claro em sua referência histórica: o texto "aponta seguramente para a época do exílio". A grande dúvida seria: o Sitz é exílico ou pós-exílico? Para Kidner, o salmo é exílico; a dor, o vigor, a força com que o texto é escrito só poderia ser fruto de alguém que vivenciasse a situação no momento da escrita. Já para Dahood, o Sitz im Leben é pós-exílico: o salmista recém-retornado ("recently returned") da Babilônia faz uma prece pela vingança de Iahweh. No desenvolvimento do trabalho optamos por considerar o salmo pós-exílico. O motivo da escolha é o fato de que a indecisão a respeito do Sitz im Leben não altera a interpretação do texto, afinal de contas, mesmo considerando o contexto vital como um recente retorno do cativeiro, a essência do sofrimento ainda continuava latente como na Babilônia. Assim, a opção mais simples - a exílica - foi escolhida. O cativeiro babilônico foi resultado de uma série de desacertos na política externa de guerra de Judá após o reinado de Josias. Joacaz, o sucessor de Josias, governa por apenas três meses (II Re 23.31-35; II Cr 36.1-4). A razão para seu curto reinado foi uma humilhação política imposta pelo faraó Necao, que o destitui e nomeia Joaquim como seu sucessor. Todos estes acontecimentos - a morte de Josias, o reinado e queda de Joacaz, e a nomeação de Joaquim - desenrolam-se no conturbado ano de 609 a.C.. É neste período que um decisivo fato histórico aparece: Nabopolassar encarrega seu filho Nabucodonosor de realizar uma campanha contra o Egito, onde os babilônios saem vencedores com a conquista da fortaleza de Carquemis. "Com isso", no dizer de Schökel e Diaz, "o equilíbrio entre o Egito e Babilônia rompe-se a favor dos babilônios". O rei Joaquim, ligado politicamente ao Egito, posicionou-se contrariamente à Babilônia, mas acabou por render-se em 603/602 ao poderio bélico da nova potência. Após três anos de impostos, Joaquim se rebela contra o opressor, deixando de pagá-los. A conseqüência imediata é o ataque babilônico à Jerusalém em 598 (II Re 24.1-4; II Cr 36.6,7) e morte de Joaquim. O controle político total, porém, só se efetua quando do início do reinado de Jeconias (sucessor de Joaquim). Nabucodonosor sitia a cidade de Jerusalém e leva um grande número de judeus para a Babilônia como cativos, inclusive o rei Jeconias. O próprio rei babilônico nomeia o novo governante de Judá: Sedecias. O novo rei mantém-se fiel até 588 (durante 10 anos de reinado) e, nesse momento, cessa de pagar os impostos - como havia feito Joaquim. Em janeiro de 587, Jerusalém é mais uma vez sitiada pelos babilônios. Com o impedimento de entrada e saída de alimentos, há uma escassez no interior da cidade, o que facilitará a investida final em 19 de julho de 586. Assim, devasta-se a cidade, incendeia-se o Templo e realiza-se a segunda - e mais famosa - deportação dos judeus para a Babilônia (II Re 25.1-21; II Cr 36.13-21; Jr 39.1-10). No cativeiro babilônico, os judeus sofreram pressões de inculturação. Fazia parte do processo de dominação de Babilônia o extermínio étnico-cultural de cada povo oprimido. O livro de Daniel nos mostra, numa narrativa estilizada, o fato de que a maioria dos deportados se adaptaram aos padrões babilônicos. Mas um grupo permaneceu fiel à Lei e à Jerusalém. É deste grupo que conseguimos ouvir, claramente, o lamento: "Como entoarei o canto de Iahweh em terra estranha?". Poucos anos após o exílio forçado dos judeus, a Babilônia começa a perder força no cenário político do Oriente. Isto acontece simultaneamente ao crescimento do Império Medo-Persa. E é Ciro, o imperador persa, quem entrará para sempre no ideário religioso judeu-cristão ao comandar as campanhas vitoriosas contra a Babilônia que culminam com a rendição em 539 e a conseqüente, mas gradual, "libertação" dos judeus para que voltassem a Jerusalém (Ed 1; II Cr 36.22,23; cf Is 45.1-7), em virtude de sua "tolerância" cultural e religiosa. É a partir deste contexto que deve ser analisada a perícope. Talvez a presença da imprecação contra a Babilônia, mesmo estando já derrotada por Ciro, denote e reforce a idéia de um contexto exílico ao salmo, anterior a 539. Sendo assim, a insistência na separação entre os fiéis à Jerusalém e os infiéis torna-se ainda mais vívida, e a necessidade da lembrança de Sião, ainda mais angustiante.

b) Contexto litúrgico-cultual

Uma importante análise contextual no livro de Salmos é a da relação entre a perícope estudada e o seu momento no culto. Na visão de alguns autores, só entende-se um salmo a partir de seu contexto cultual. Para Bentzen, seguindo a linha de Mowinckel, "o Sitz im Leben dessa poética [os Salmos] é o Templo com suas numerosas funções cúlticas celebradas nos adros" (observação entre colchetes nossa). O salmo 137 - que não classifica-se facilmente - parece estar enquadrado no esquema das súplicas coletivas da nação. Estas súplicas eram cantadas nas liturgias de penitência, geralmente em peregrinações anuais como a Festa dos Tabernáculos. Durante essas liturgias, o povo reassumia seus votos de Aliança com Deus, após penitenciar-se por suas faltas Ao cantar a perícope em questão nas liturgias pós-exílicas, o povo refazia seus votos de fidelidade à Jerusalém e a Iahweh. A idéia era tomar a iniciativa da execução dos atos pedidos a Deus, considerando-se instrumentos da soberania de Iahweh na manutenção do mundo. Lembrar de Jerusalém, manter-se fiel a Sião era tomar atitudes que demonstrassem esta fidelidade.

Teologias

Teologia do Texto

Teologia subjacente

Nesta etapa abordaremos as interpretações tradicionais oferecidas ao texto. Tentaremos, a partir destas interpretações, descobrir a teologia que está latente na perícope, numa análise versículo a versículo. v.1 - As margens dos rios eram uma constante na vida dos judeus exilados de sua pátria. Clarke observa a respeito deste costume: En su cautividad y dispersión, los judios acostumbraban celebrar sus reuniones religiosas a la orilla de los ríos. En Hch. 16:13 se hace referencia a esto: allí encontramos a los judíos de Filipos acudiendo "junto al río, donde solía hacerse la oración. Assim, os momentos junto aos rios eram instantes de culto, onde a lembrança de Sião, dava ao povo força revigorada. Curiosa também é a diferença física implícita entre a terra deste versículo e Judá. As planícies entrecortadas por rios e canais de Babilônia formavam um contraste com a lembrança de Judá, um território repleto de montanhas, vales e ribeiros sinuosos. A saudade de Sião era o que unia aquelas pessoas, e não simplesmente a herança judaica. Aqueles que já não sentiam falta de Sião, talvez não precisassem servir aos babilônios de forma mais dura, pois já estariam adaptados à vida em terra estranha. Mas aquele grupo reunia-se para chorar sua dor e clamar pela libertação expressa na derrota da Babilônia. v. 2 - Os judeus escondiam suas harpas (dependuravam-nas) a fim de não poder tocar para os babilônios: os opressores poderiam ter o seu trabalho forçado, mas o seu louvor pertence somente a Deus. v. 3 - Aqui há uma referência clara ao que é a Babilônia. Ela não é uma oportunidade de crescimento cultural, como alguns poderiam estar pensando, e nem o novo lar, como os resignados já aceitavam. Babilônia era o opressor, aquele que levou o povo cativo. No sentido original do termo, Babilônia era quem provocava um lamento. Este lamento - a nossa perícope - era fruto da opressão imposta por Babilônia. A resposta aos pedidos irônicos e insultuosos dos babilônios não seria um alegra cântico de Iahweh, e, sim, um lamento terrível de quem está longe de seu lar. Este costume de exigir canções por parte de seus escravos não era prática exclusiva com relação aos judeus e nem simples figura de linguagem. Sobre isso, Kidner observa que quanto às harpas e à exigência de canções, acontece que um relevo do palácio de Senaqueribe em Nínive, no país vizinho da Assíria, retrata uma situação semelhante a esta, com três prisioneiros de guerra tocando liras enquanto um soldado armado os fazia marchar. Impossível era estar alegre nesta situação. v. 4 - Aí surge a grande questão que permeia o Salmo: como poderemos estar alegres em meio a tanta desgraça? Como poderemos, impunes, cantar o canto de Iahweh numa terra que não é a nossa? Entoar o canto do Senhor para os opressores seria o mesmo que perder suas esperanças no Deus de Israel. Esta pergunta, na verdade, reorienta a estrutura do salmo. Não mais se fala da tristeza e do sofrimento do povo cativo, e, sim, do auto-imposto desafio de manter-se fiel à Lei de Iahweh, representada em Jerusalém. v. 5 - O não lembrar é aqui utilizado em relação a Jerusalém. Num compromisso pessoal feito pelo povo, se reconhece a impossibilidade de tocar qualquer instrumento caso seja esquecida Jerusalém. Se o povo não se mantém fiel a Jerusalém e tudo o que ela significa, então que ele não consiga mais tocar as canções de Sião, pois sua mão estará ressecada. v. 6 - Ressaltando o verso anterior, o salmista nega-se mesmo o direito de cantar (até mesmo de falar) caso Jerusalém não seja para ele o que há de mais importante. E é aí que entra a pergunta que talvez seja a chave de compreensão do texto: para que essa saudade sem limites? para que este lembrar-se intenso? O povo deve manter a lembrança de Jerusalém acesa, pois o retorno a ela acontecerá a qualquer momento: este era o discurso profético que surgia em meio ao exílio. O Senhor não abandonou seu povo, mantenha-se fiel a Ele, pois o dia da vingança chegará. A esperança da libertação proporcionada por Iahweh era o que movia o povo a manter-se fiel. Não contaminar-se com os manjares do rei babilônico - para usar uma figura de Daniel - significa não esquecer de Jerusalém, o seu único lar. Todos os votos têm uma esperança em seu extremo. Ninguém faz um voto sem razão para fazê-lo. Os votos do povo distante de casa em manter-se fiel tinham como esperança a volta para casa. v. 7 - Aqui inicia-se a imprecação, a mais dura, com certeza, de todo o Saltério. O salmista pede a Iahweh que relembre a Edom o dia de Jerusalém. Que dia seria esse? Provavelmente, o dia da invasão de Jerusalém: 19 de julho de 586 a.C. Segundo Moll, os edomitas foram particularmente ativos na invasão de Jerusalém (Am 1.11; Jl 4.19; Ob 10): daí a razão da imprecação contra Edom (Je 12.6; 25.14; Lm 4.21,22; Ez 25.12; Ob 11.14). Iahweh deve lembrar-se de Edom, e esta lembrança (zkr) é uma lembrança ativa. Quando o salmista pede a Iahweh que traga Edom à sua memória, na verdade está pedindo ao Senhor que faça justiça. O povo não está passivo neste processo; se for necessário, ele será o instrumento da lembrança do Senhor (como seriam Ciro e os medo-persas com relação à Babilônia). Não deve-se ver um povo derrotado entoando este salmo. Ao contrário, a imagem que vem a mente é a de um povo esperançoso, que mesmo no lar do opressor, numa terra distante, consegue fixar-se em Jerusalém, consegue transportar-se ao objeto de seu desejo. E é isso que dará força a este povo para estar debaixo da vontade soberana de Iahweh. Vinga-nos, Senhor - é a prece de Judá, o tempo não apagou a nossa lembrança. v. 8 - Voltam-se as luzes para a Babilônia, a grande inimiga, a "destruidora". Numa linguagem jurídica (como é característico da imprecação), apela-se à lex talionis, ou princípio de retribuição: o mesmo que Babilônia fez, deverá receber. O que se quer é que o opressor prove do gosto de sua opressão. Se Babilônia invadiu, que seja invadida; se destruiu, que seja destruída; se humilhou, que seja humilhada; se exterminou, que seja exterminada. Mais uma vez, considera-se a vingança como certa, inclusive a ponto de desejar a benção a quem o fizer. v. 9 - A perícope atinge seu clímax no violento e cruel final, talvez o texto mais duro da Bíblia. O salmista considera como bem-aventurado aquele que matar os bebês babilônios esmagados contra a rocha. Tentar mascarar o que se vê é forçar o texto bíblico. O grande fascínio exercido pelos Salmos é que eles mostram o ser humano como ele é: no nosso caso, cruel, vingativo e insensível. Procura-se, então, responder a pergunta que surge, de acordo com Tonucci: "por que tanto espírito de vingança e tanta crueldade"? Este último verso segue, certamente, o princípio de Talião, em continuidade ao verso anterior. O extermínio de crianças e de mulheres, apesar de cruel, era um costume bélico da época (II Re 8.12; Is 13.16; Os 10.14; 13.16; 14.1; Na 3.10) que deve ter sido utilizado, com certeza, quando da invasão de Nabucodonosor a Jerusalém. Aos que perguntam sobre como o grau de crueldade dos antigos podia ser tão alto, basta olhar ao redor de si para encontrar a resposta. Por exemplo, de acordo com o relatório Stubaf-Haller, da Segunda Guerra Mundial, um dos métodos utilizados em Bromberg era "segurar as crianças judias pelos pés, quebrando a sua cabeça contra a parede". E para aqueles que acham isto ainda distante demais de nossa realidade, Tonucci retrata um triste quadro: Ficamos espantados, e justamente, com a crueldade dos antigos. E hoje, não acontece algo de semelhante nas guerras, onde são massacrados crianças mulheres e velhos? Não acontece algo de semelhante em nossas cidades onde uma maioria é obrigada a sacrificar-se e morrer à míngua para o luxo de uma minoria? Não acontece algo semelhante em nosso interior, onde os grandes proprietários expulsam os posseiros? As crianças que morrem por falta de comida, os jovens e adultos que se tornam tuberculosos, não são vítimas de um sistema iníquo? Estas duras palavras nos fazem perceber que a humanidade continua a mesma, a despeito da evolução da tecnologia e da ciência, e talvez o salmo choque tanto por causa disso: ele é, na verdade, um retrato de nós mesmos, na essência. Mas deve-se ler o último verso (e toda a perícope) a partir do evento Cruz, que ainda não estava presente no momento da escrita do salmo. Com a encarnação do Cristo e sua morte vicária na cruz, o desejo de vingança perde o seu sentido. NEle está o julgamento, e é por Ele que todos os pecados são perdoados. A nossa reação defronte ao salmo deve ser de compreensão, mas de também repúdio, sabendo que o que deve ser odiado e exterminado não são as pessoas que executam as crueldades, e, sim, o sistema que possibilita essas crueldades.

Diálogo com a Teologia Sistemática Reformada

A teologia subjacente ao texto com certeza tem implicações dogmáticas. O estudo destas implicações e do relacionamento da teologia do texto com a teologia sistemática é essencial para uma aplicação bem-sucedida. Três temas podem ser desenvolvidos a partir do texto e têm implicações teológicas grandes: o pecado do homem - quando se discute a crueldade expressa na perícope, principalmente em seus versos finais, e sua semelhança com hoje; o evento da Cruz e o que ela significa; e, o tema central, a esperança - a saudade do povo e as imprecações, só entendidas à luz da esperança concretizada nas promessas de Iahweh. 1. O tema do impulso natural do homem ao pecado é dissecado pela teologia calvinista. Para Calvino, o homem tem esta natureza voltada para o mal em virtude da Queda, fruto do "pecado original". Nas palavras de Calvino, Esta é a corrupção hereditária que os antigos designaram de "pecado original", entendendo pelo termo pecado a depravação de uma natureza antes disso boa e pura, matéria a respeito da qual muita lhes foi a contenção, uma vez que nada seja mais remoto do sentir comum que pela culpa de um só todos se façam culpados e, dessarte, o pecado se torne comum [a todos]. Assim, todo o homem, em todo o tempo, tem uma vocação natural ao pecado. Este dogma, que a partir do Sínodo de Dort, vai ser conhecido como Depravação Total, explica a impossibilidade do homem em fazer algo de bom. Trabalhando o capítulo 3 de Romanos, Calvino escreve a respeito das culpas do gênero humano: Se são esses os dotes hereditários do gênero humano, em vão algo de bom se busca em nossa natureza. Reconheço, sem dúvida, que nem todas estas abominações vêm à tona em cada ser humano; entretanto, não se pode negar que esta hidra jaz oculta no coração de cada um. Este mesmo ensinamento é atestado pelo Sínodo de Dort: todos los hombres son concebidos en pecado y, al nacer como hijos de ira, incapaces de algún bien saludable o salvífico, e inclinados al mal, muertos en pecados y esclavos del pecado; y no quieren ni pueden volver a Dios, ni corregir su naturaleza corrompida, ni disponerse a sí mismos al mejoramiento de la misma, sin la gracia del Espíritu Santo, que es quien regenera. Com a base dogmática oferecida pela doutrina da Depravação Total, podemos entender claramente o desejo de vingança incluído na imprecação do salmista. O homem sempre tende ao mal, quanto mais se alguém o ferir. O princípio de Talião é um princípio típico de justiça humana corrompida: paga-se o mal com o mal, sem levar-se em conta a possibilidade do perdão. 2. Outro tema que pode ser desenvolvido a partir do texto é uma reinterpretação a partir do evento Cruz. A encarnação, morte e ressurreição de Cristo oferecem uma nova perspectiva para a justiça. A Cruz carrega em si todo o pecado, abrindo a possibilidade do perdão. Para Calvino, a Cruz é símbolo de maldição, mas para nós é benção. Segundo ele, enquanto é nela alçado, Cristo Se faz sujeito à maldição. E assim se impôs fazer-se, para que, enquanto para com Ele se transfere [ela], eximidos fôssemos de toda maldição que, em conseqüência de nossas iniqüidades, se nos reservava, ou, antes, impendia sobre nós. Isto fora (sic) alumbrado até mesmo na Lei. (...) [O] que, porém, fora (sic) representado figurativamente nos sacrifícios mosaicos, isto se exibe em Cristo, atualizado no arquétipo. Ainda dentro deste aspecto, a teologia reformada considera a morte de Cristo como parte de um processo de caráter "judicial": Cristo é condenado em lugar dos eleitos. De acordo com Berkhof, É segundo este ponto de vista judicial que se deve considerar a morte de Cristo. Deus impôs judicialmente a sentença de morte ao Mediador, desde que Este se incumbiu voluntariamente de cumprir a pena do pecado da raça humana. Uma vez que Cristo assumiu a natureza humana com todas as suas fraquezas, como ela existe desde a Queda, e assim se fez semelhante a nós em todas as coisas, com a exceção única do pecado, segue-se que a morte operou nele desde o princípio (...) Ou seja, a morte de Jesus Cristo na Cruz proporciona uma reavaliação total da existência. Valores são transformados, anseios e planos são redirecionados e antigas idéias são postas de lado. Apesar de entendermos a perspectiva existencial do clamor do salmista por vingança, o corte que o evento Cruz incide sobre o texto nos leva a uma releitura e reformulação. O pecado do homem está em Cristo na Cruz; segundo o aspecto "judicial" proposto pela teologia reformada, também a condenação está sobre Ele. Sob esta perspectiva, os opressores continuam responsáveis por suas atitudes e o sistema de opressão continua sendo desafiante à justiça de Deus, mas a relação do povo com os dominantes pecadores inclui agora um conceito antes não pensado: o perdão. 3. O tema teológico central, porém, do texto é a esperança. O povo sente saudades de Sião e espera ansiosamente o dia da volta; faz um desafio a si mesmo, renovando seus votos, e espera cumprí-lo; dirige suas preces a Iahweh e espera que Ele as atenda. Pensar a questão da esperança no âmbito da teologia sistemática é trabalhar no contexto escatológico. A grande esperança da Igreja é a vinda de Jesus e seu Reino. Calvino chega a afirmar que devemos menosprezar a vida terrena. Nas suas palavras, Certamente que ninguém de nós há que não deseje à celeste imortalidade parecer aspirar e [por ela] esforçar-se por todo o decurso da vida. Pois, vergonha nos causa em cousa nenhuma sobrelevar-nos aos animais irracionais cuja condição em nada haveria de vir ser inferior à nossa, a não ser que nos restasse a esperança da eternidade após a morte. Apesar disso, o reformador instrui aos leitores para que esse desprezo não gere ódio ou ingratidão a Deus, pois é nesta vida que viemos a conhecer os mistérios divinos. Com certeza esta perspectiva escatológica contribuiu - mesmo que fosse a contragosto de Calvino - para a excessiva valorização do Reino futuro, sem levar em conta a instauração desse Reino que já aconteceu na encarnação do Cristo. Contribuiu também para o surgimento da ótica pré-milenismo com sua ênfase na vida vindoura e seu pessimismo crônico que finda por cair na inoperância social. Esperança escatológica na visão reformada ortodoxa acaba, quase sempre, relacionando-se a um olhar para o futuro descomprometido com o presente, que caminha para o caos - seja qual for a corrente: tanto a doutrina oficial amilenista, quanto a doutrina vivencial pré-milenista de grande parte dos membros.

Diálogo com a Teologia Contemporânea

Antes de analisarmos a perspectiva escatológica da esperança na teologia contemporânea propriamente dita (década de 60 em diante), faremos um apanhado do que hoje, no Brasil, ainda cognomina-se como teologia contemporânea, mas que, na maioria dos casos, tem mais de meio século de história. A posição que representou o pensamento mais ligado aos ideais reformados na primeira metade do século foi a Teologia Dialética de Karl Barth. Barth não hesitou em combater o protestantismo cultural e luta para fazer a teologia voltar, nos dizeres de Bingemer e Libânio, à "intuição inicial dos Reformadores": a Transcendência de Deus. Barth é extremamente dogmático em sua avaliação do "eschaton". Não se trata de um evento temporal, mas qualitativo. Referir-se ao escatológico é referir-se à qualidade de Eterno de Deus. "É a presença do Eterno de Deus que põe em crise todo o temporal, que faz explodir o não-ser de nossa realidade, que revela a nulidade da história humana, temporal". Outra figura importantíssima para a formação teológica de nossos dias é Rudolf Bultmann, com uma concepção exatamente oposta a de Barth. Enquanto para Barth, o eschaton estava na Transcendência, "R. Bultmann traz para dentro da decisão pessoal a força do escatológico". O homem, para Bultmann, é a possibilidade de abertura para o futuro. Para definir esta característica, ele forjou o termo poder-ser. Segundo ele, A concepção do mundo é de que a pessoa humana sempre tem possibilidade. Ele sempre esquece que a pessoa sempre é possibilidade ela mesma, que seu ser é um poder-ser, que a pessoa sempre está chamada à decisão em cada ocasião e está em jogo. Outro grande teólogo desta fase inicial, Paul Tillich, não acrescenta muito material especificamente escatológico, mas oferece em sua Teologia Sistemática sua concepção de "fim da história". Para Tillich, O fim da história neste sentido não é um momento dentro do desenvolvimento mais amplo do universo (analogicamente chamada história) mas transcende todos os momentos do processo temporal; ele é o próprio fim do tempo - é eternidade. Grandiosa mesmo é a contribuição de Oscar Cullmann com a dialética entre o já e o ainda não. Todo o pensar escatológico passa por essa bipolarização. O Reino de Deus, por exemplo, é esperança do futuro, na certeza que é um evento presente: ele já está instaurado, mas renova-se a cada dia, pois ainda não está concretizado completamente. Nas palavras de Cullmann, a revelação consiste exatamente em anunciar que o acontecimento que se cumpriu na cruz, seguido pela ressurreição, representa a batalha decisiva já vencida. É nessa certeza da fé, que implica também, como conseqüência, o desfrutamento dos resultados daquela vitória que consiste a participação da fé na soberania de Deus sobre o tempo. É desta base teológica que nascem dois movimentos teológicos contemporâneos que dão ênfase à escatologia em seus métodos teológicos: as Teologias da Esperança e da Libertação. O maior nome da Teologia da Esperança é Jürgen Moltmann. Influenciado pelo filósofo Ernest Bloch - de linha marxista, Moltmann propõe um realinhamento dos loci teologici: para ele, o locus da escatologia não deve ser o final dos tratados teológicos e, sim, o início dessas obras. De acordo com Moltmann, se deseja-se conhecer a essência do cristianismo, "é preciso interrogar sobre o futuro em que ele coloca suas esperanças e expectativas". A partir desta perspectiva, Moltmann interpreta o cristianismo como um herdeiro substancial do judaísmo: ambos são religiões da promessa. Fica clara a relação com a perícope analisada neste trabalho: só entende-se os apelos do povo judeu a partir de sua auto-compreensão como o povo da promessa. Com relação a Igreja, Moltmann propõe ser ela o sinal do Reino de Deus; ela é o já em contraposição ao ainda não do futuro. Moltmann entende por conseguinte, o Reino de Deus como o cumprimento escatológico da senhoria histórico-libertadora de Deus (...). Seria unilateral ver a senhoria de Deus somente no seu reino perfeito, como também geraria muitos equívocos uma equiparação entre reino de Deus e o domínio que Deus exerce atualmente. Em seu reino, Deus reina de modo incontrastado, universal e em toda a clareza. Jürgen Moltmann influencia uma enorme leva de teólogos, entre eles o brasileiro Rubem Alves. Em sua tese de doutorado, Rubem Alves propõe uma evolução da Teologia da Esperança que desembocaria no humanismo político. Assim, Alves é o elo latino-americano entre a Teologia da Esperança e a da Libertação. Para Rubem Alves, a teologia de Moltmann não traz uma abertura para os movimentos sociais, pois "o futuro prometido faz nascer a crise do presente. Não é a crise do presente que faz nascer a esperança de um futuro promissor". Outro grande conflito entre o humanismo político de Rubem Alves e a Teologia da Esperança de Moltmann é o fato de que para Moltmann, o tempo do futuro brota da transcendência moldada pelo sofrimento ("a ressurreição é filha da cruz"). Já para Alves, o futuro está aberto e o sofrimento não é uma necessidade. A escatologia libertacionista brasileira vai ser influenciada por essa discussão, como por exemplo, Leonardo Boff, que propõe a decisão final do ser em função de sua história no mundo.

Teologia proposta

Todos estes contextos teológicos servem para percebermos a influência da noção de esperança para uma melhor compreensão do salmo 137. O salmista trabalha a concepção de lembrança durante todas as partes do salmo. Está claro que seu desejo era centralizar as atenções em zkr, um lembrar-se que implica em atividade visível, em manter a fidelidade. Até o lembrar-se de Iahweh está em conexão com esta atividade, pois o Senhor pode utilizar como instrumento de sua vingança o próprio povo de Israel. Há uma crítica muito aberta no texto aos judeus que se adaptaram ao padrão babilônico de vida, esquecendo-se de Jerusalém. Os verdadeiros judeus não poderiam viver como se nada houvesse acontecido, como se estivesse a passeio, não depois do que Babilônia fez a Sião. O templo fora destruído, os valores judeus, profanados. A cultura, reduzida a quase nada. E ainda assim algumas pessoas colaboravam para que se perdesse por completo os elementos culturais judaicos, ao tomar como certo o padrão de vida do opressor. Não, o verdadeiro judeu não poderia rejubilar-se com o inimigo, cantar com alegria os cânticos de Sião. O salmista conclui que a força para manter-se fiel a seus princípios está na saudade de Jerusalém. É essa lembrança que o fará cumprir seus votos. Mas a lembrança sozinha não basta para dar ânimo a um povo retirado de sua terra. A fidelidade à Jerusalém só faz sentido se entendida como esperança de retornar ao lar. O povo não mantinha seus votos e seus desafios movidos por uma força absurda: era o desejo de não ser infiel que os levava a continuar. O sentimento era como o de alguém que passa muito tempo distante da companheira (o) e, mesmo assim, decide não sucumbir à traição, pois sabe que retornará à sua amada (o). Se eu me esquecer de ti, oh, Jerusalém - diz o salmista, que eu não cante mais, que eu não toque mais, que eu não seja mais feliz. A esperança não dizia respeito somente ao retorno à Sião. A vingança contra Edom e Babilônia significava o fim do sistema opressor. O verdadeiro judeu tinha certeza de que Iahweh não permitiria que o Império Babilônico continuasse a massacrar os povos, como estava fazendo. Iahweh não é homem para que se esqueça dos vivos, e lembrar de Sião - habitação do Senhor - é também esperar a vingança de Iahweh. Quando interpreta-se a perícope sob esta perspectiva, o essencial deixa de ser a crueldade verificada na imprecação e passa a ser a esperança de que a opressão acabe. O problema da forma cruel como a imprecação vem escrita é explicado no diálogo com a teologia sistemática. O homem é mau por natureza, não consegue entender o mistério do perdão. Mas o texto que chega até nós mostra o homem no auge de sua crise existencial. Se a esperança na atuação de Iahweh for proporcional a força com que é narrada a imprecação, como achamos que seja, então o foco de importância deixa de ser a linguagem e passa a ser a essência do texto: Deus há de cumprir sua promessa. Os judeus se entendiam como o povo da promessa. Eles não podiam passar por uma experiência de promessa divina sem esperar com todas as forças a resposta desta promessa. O que vemos, com clareza, no salmo 137, é um povo que não se contamina com a realidade do opressor porque tem saudades de Sião, e essa saudade manifesta-se na sincera esperança do retorno à Jerusalém e do fim do sistema de opressão promovido pela Babilônia. Esta esperança não era em palavras de homens: era na promessa de Iahweh.

Atualização

Sobre o que um texto hebraico poético de 2.500 anos atrás, feito por um povo que era oprimido e exilado na terra de seu opressor, servindo-o, pode nos falar hoje em dia? O que o mundo da tecnologia informática, da inteligência artificial, das naves espaciais, dos instrumentos musicais multi-mídia pode aprender com um povo que protestava pendurando suas harpas nas árvores? Muito. A realidade brasileira (o que poderia ser estendido à América Latina, África e Ásia) é de profundo caos social. Iludido pelo sonho de uma economia estável, o povo do Brasil sorve sua própria cicuta, transmutada no projeto neo-liberal. O que se vê, na verdade, é um aprofundamento das distâncias entre as classes sociais, espoliando até a, antes inamovível e intocável, classe média. A opção pelo sistema econômico em contraposição ao desenvolvimento social está clara em ações governamentais como o recolhimento automático de bilhões dos cofres públicos para salvar bancos falidos, e a "falta" de recursos para salvar a Saúde, a Reforma Agrária, a Educação e etc. Vivemos sob a opressão do sistema econômico, que é pior do que a opressão política, pois é velada e quando é colocada numa discussão, num passe de mágica, transforma as realidades em estatísticas. O governo propaga em alto e bom som ter conseguido assentar 100 mil famílias em seu Programa de Reforma Agrária durante dois anos. Mas omite o fato de que, no mesmo período, 400 mil propriedades rurais foram a falência. Isto significa que, para cada família que o governo assentou, quatro se tornaram sem-terra. Esta é a opressão da mentira, da manipulação de informações. Quando olhamos bem, nos sentimos tão oprimidos quanto o salmista no cativeiro babilônico. Não mais retira-se as pessoas de sua terra, hoje retira-se a dignidade, lenta e cruelmente. E ao mesmo tempo que vemos este agravamento da situação caótica de nossa sociedade, ouvimos brados triunfalistas dos arraiais protestantes dizendo: "O Brasil é do Senhor Jesus"! Pessoas que passam a vida inteira na plena certeza de estar conhecendo o avivamento divino sem nunca terem experimentado o fogo consumidor de Iahweh, o Senhor das Hostes. A Igreja Protestante no Brasil tem comungado com o sistema político. Os líderes políticos evangélicos atuam perfeitamente em sua arte de imitar os piores exemplos da sociedade corrompida. Os evangélicos têm convidado os governantes para virem a seus Encontros e, às vezes, até vão ao encontro deles, cantando e orando: verdadeiras odes ao sistema opressor. Ah, como podem entoar o cântico de Iahweh em terra estranha?... É preciso reunir o "remanescente": os "verdadeiros judeus". O lamento do Salmo 137 nos diz que há uma esperança. Os judeus olhavam para Jerusalém, protótipo dos sonhos e anseios, cidade da justiça, cidade da paz. Lembrar de Jerusalém não permitia que eles seguissem os padrões da Babilônia. As saudades de Sião faziam com que a esperança de voltar não morresse, e essa esperança os motivava a caminhar em frente, negando-se a conformar com as humilhações impostas pelos opressores. E nós, de que devemos lembrar? A que modelo devemos permanecer fiéis? De que devemos ter saudades? Precisamos ter saudades do futuro... O alvo de nosso olhar deve ser a Jerusalém escatológica, o Reino de Deus que já iniciou-se na Encarnação do Verbo, mas que ainda não completou-se, pois seu fim está no futuro. A esperança de concretizar o ideal do Reino de Deus é que nos mobiliza a não aceitarmos os padrões deste sistema opressor. Estamos "caminhando com os olhos no futuro". Dentro de nós mesmos está algo que ainda não nasceu, mas que já dá sinais de sua existência: a Jerusalém celestial. Lá onde não haverá lágrima, luto, lamento e nem dor (Ap 21.4). Lá onde não terão vez os covardes, os infiéis, os corruptos, os assassinos, os mentirosos e todos aqueles que nunca choraram pelo cativeiro econômico dos seus irmãos (Ap 21.8). Igreja que se propõe a ser Reino de Deus precisa ter saudade. Precisa olhar para dentro de si mesmo, reavaliar suas atitudes. "Saudade é o revés do parto", enquanto no parto olha-se para fora, na saudade olha-se pra si mesmo. Olhando para esse ideal, essa chama divina colocada por Deus em nossos corações, manteremos nossos olhos fixos nos valores do Reino. Igreja que se propõe a ser Reino de Deus precisa ter esperança. Precisa ter abertura para o futuro. Precisa crer que tem forças para exercer seu ministério profético e desafiar o mundo a ser um lugar de justiça e de paz, a despeito dos falsos judeus que dançam e brincam em folguedos para alegrarem ao opressor. Igreja que se propõe a ser Reino de Deus precisa ter confiança. Confiança nas promessas de Iahweh, que nunca deixou de cumprí-las.

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